sexta-feira, 22 de outubro de 2010

DEU NO NEW YORK TIMES

Meus caros,

O matéria abaixo foi publicada num dos mais importantes jornais do mundo, o famosérrimo New York Times.

Faço questão de transcrevê-la, afinal de contas o Brasil só é notícia no exterior quando o assunto é futebol, samba ou bunda.


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Em violenta favela, polícia brasileira tenta um toque de cortesia


RIO DE JANEIRO - Leonardo Bento ansiava por vingança depois que um policial matou seu irmão, cinco anos atrás.

Assim, quando ouviu que a nova "polícia da paz" na favela Cidade de Deus estava oferecendo aulas gratuitas de caratê, Bento se matriculou, esperando ao menos conseguir espancar o instrutor de luta. Mas o inesperado aconteceu.

Eduardo da Silva, o instrutor da polícia, o recebeu com bom humor e um aperto de mão.

"Comecei a perceber que o policial na minha frente era apenas um ser humano, e não o monstro que eu pintava em minha cabeça", disse Bento, de 22 anos.

Anos de ódio e desconfiança estão sendo apagados em algumas das favelas mais violentas do Rio. Obrigadas a reduzir as preocupações com a segurança antes de dois eventos internacionais na cidade - a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 -, as autoridades do Rio embarcaram num ambicioso plano para retirar o controle das favelas dos implacáveis grupos de traficantes, que há anos as comandam com armas poderosas e um terror abjeto. Os policiais pacificadores são essenciais para esse esforço.

Eles entram em ação depois que a polícia militar limpa as ruas em batalhas armadas que chegam a durar semanas. Seu trabalho se divide em policiamento tradicional e trabalho social. Eles se dedicam a conquistar moradores acostumados a décadas de violência - inclusive pelas mãos da polícia. E as dicas dadas por aqueles que apoiam seus esforços, segundo as autoridades, ajudam-nos a manter uma relativa paz.

Durante décadas, a Cidade de Deus - cujo passado brutal foi imortalizado num filme de 2002 - foi uma das regiões mais temidas da cidade, tão perigosa que até mesmo a polícia raramente se atrevia a entrar. Aqueles dias parecem nunca ter existido.

O tráfico de drogas permanece, e em pelo menos uma área, pessoas de fora podem entrar somente com a permissão de jovens locais que patrulham as ruas. Mesmo assim, esses homens com armas assustadoras foram embora, ou ao menos empurrados para esconderijos. E a vida está retornando às ruas. Hoje as crianças brincam ao ar livre sem medo de balas perdidas. Elas pulam corda e jogam tênis de mesa com raquetes feitas de tacos de piso.

Partidas de futebol, antigamente violentas, se tornaram mais civilizadas, com policiais ocasionalmente participando dos jogos.

Mas quase dois anos após a chegada das novas unidades policiais, muitos moradores desta comunidade de 120 mil pessoas ainda lutam para aceitar que os 315 policiais trabalhando em turnos de 12 horas não representam mais o inimigo. Outros dão as boas-vindas com hesitação, temendo que a força policial - anteriormente chamada de "unidades da polícia pacificadora" - deixará o local assim que as olimpíadas terminarem.

"Ninguém gosta de nós por aqui", afirmou o oficial Luis Pizarro durante uma recente patrulha noturna. "Isso algumas vezes pode ser frustrante".

Pizarro e dois colegas patrulhavam ao longo de um estreito riacho repleto de lixo exalando um forte cheiro de dejetos humanos e animais. Famílias se reuniam ao redor de fogueiras improvisadas. Mulheres sambavam enquanto os homens bebiam cachaça. Quase ninguém acenava ou cumprimentava os policiais, que caminhavam por uma viela coberta pelo papel colorido usado para empacotar crack e cocaína.

"Lá vai o esquadrão de elite", disse um homem numa soleira, rindo enquanto os três passavam.

A hostilidade não é difícil de entender. Durante décadas, autoridades do governo se recusaram a assumir responsabilidade pelas favelas, e à medida que os traficantes acumulavam estoques de armamentos, a polícia via mais dificuldades em entrar sem tiroteios.

Os moradores se ressentiam da polícia por abandoná-los, e a odiavam pela brutalidade que marcava suas sangrentas incursões. Sem uma presença policial diária, os serviços sociais sofriam, e médicos e outros profissionais começaram a evitar as favelas por razões de segurança. Os líderes do tráfico se tornaram juiz e júri.

"Os moradores não tinham a coragem para retomar as favelas", segundo Jose Mariano Beltrame, que assumiu como secretário de segurança pública do Rio em 2007.

"As pessoas preferiam varrer o pó para debaixo do tapete e evitavam enfrentar o problema".

As favelas raramente se renderam sem luta. Pelo menos oito pessoas morreram na Cidade de Deus em 2008, nas primeiras incursões da polícia. Essas batalhas devem se tornar mais frequentes à medida que a polícia atingir novas regiões.

Até agora, foram instaladas 12 unidades pacificadoras, cobrindo 35 comunidades. Mas Beltrame pretende estabelecer unidades em 160 comunidades até 2014, inclusive em favelas como a Rocinha e Complexo do Afonso, que são maiores que Cidade de Deus. Mesmo com violentos desafios à frente, muitos moradores do Rio torcem pelo programa.

Dilma Rousseff, atual candidata à presidência do Brasil, propôs expandir o modelo a outras cidades. Milhões de dólares em doações, de empresas como a Coca-Cola e do bilionário Eike Batista, pagam por coisas como equipamentos policiais.

Beltrame disse que seu principal objetivo era livrar as ruas das "armas de guerra", e não necessariamente acabar com o narcotráfico. Ele também está trabalhando para diminuir a corrupção policial, que contribui tanto para violência quanto para a postura desconfiada dos moradores.

Muitos dos policiais da paz são intencionalmente recrutados logo que saem da academia de polícia, antes que sejam seduzidos pela receptação de dinheiro do tráfico para complementar seus salários relativamente baixos.

Mesmo assim, está claro que a presença da polícia mudou as vidas para melhor na Cidade de Deus.

Funcionários públicos prestando serviços hoje podem entrar mais livremente. A frequência nas escolas aumentou, com um ensino médio apresentando um crescimento de 90% nos índices de presença desde a chegada da polícia à comunidade. Caminhões de terra fazem a dragagem do rio sujo e estreito, e caminhões de lixo fazem a coleta três vezes por semana.

A polícia também realizou mais de 200 prisões desde que retomaram a Cidade de Deus, e o crime caiu: seis homicídios no ano passado, frente a 34 em 2008. A maioria dos moradores está grata, embora alguns digam que algo intangível tenha sido perdido - um certo espírito de liberdade.

O capitão Jose Luiz de Medeiros, que lidera a unidade policial na Cidade de Deus, disse estar construindo uma força para o longo prazo, e trabalhando duro para conquistar a confiança dos residentes.

Cerca de 12 policiais visitaram recentemente uma nova creche, girando chupetas com os dedos enquanto as crianças brincavam com seus comunicadores e se penduravam em suas pernas e coldres. Alguns dos policiais foram liberados da patrulha para dar aulas de violão, piano e inglês. Da Silva, o instrutor de caratê, é um dos que hoje leciona em tempo integral.

Bento, que se inscreveu na aula depois da morte de seu irmão, conta ter pensado em se juntar aos traficantes para ter acesso a armas. Mas desde que conheceu da Silva, mudou de ideia e hoje tenta ajudar outros moradores a vencer seu medo da polícia.

Da Silva afirmou entender a cautela das pessoas. "É impossível que eles esqueçam seu passado", disse ele. "Tudo que posso fazer é mostrar que eu estou aberto a eles".

Para demonstrar seu argumento, ele vem para Cidade de Deus desarmado e sem colete à prova de balas. "A força não cria paz", disse ele. "Ela pode inspirar respeito, mas não confiança".

© 2010 New York Times News Service Tradução: Pedro Kuyumjian

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